De dezembro de 1979 a maio de 1983 morei em Fortaleza, Ceará. Lá fui revisor, repórter, diagramador e, às vezes, editor do jornal Mutirão.
Era o único jornal da época no Ceará que fazia oposição aos três coronéis que mandavam na política alencarina: Virgílio Távora, César Cals e Adauto Bezerra.
Os três se revezavam no comando político do Ceará e Virgílio Távora foi o último governador biônico de 1979 a 1982. Em 1980 Mutirão publicou uma matéria que criticava a acão da primeira dama, Luísa Távora, à frente da secretaria de Ação Social.
O governador coronel Virgílio Távora ficou possesso e chantageou todas as gráficas do Ceará: aquela que imprimisse o jornal Mutirão seria alvo de uma rigorosa auditoria por parte da secretaria estadual da Fazenda.
Essa decisão autoritária de Távora me ajudou muito na minha trajetória de jornalista. Com as portas das gráficas cearenses fechadas para o jornal Mutirão, eu passei a viajar por todo o Nordeste e o Norte do Brasil com o boneco de cada edição de Mutirão na mão para imprimir o jornal em gráficas de diversos Estados.
Editei sozinho vários números do Mutirão em Natal, Mossoró, Campina Grande, João Pessoa, Recife, Maceió, Salvador, São Luís, Belém e até em Governador Valadares, em Minas Gerais. Nestas viagens aprendi a fazer de tudo um pouco na arte de editar um jornal.
Mas tive três experiências marcantes nesta época. Uma em Maceió, onde conheci o grande Teotônio Vilela, dono do jornal Tribuna de Alagoas. Ele gostou tanto do meu trabalho que não cobrou nada pela edição e impressão de oito mil exemplares do Mutirão, na gráfica da Tribuna de Alagoas.
A outra passagem marcante no Ceará aconteceu na cidade de Parambú, na região oeste do Ceará, perto do município de Tauá, na divisa com o Piauí. Fui cobrir para Mutirão uma manifestação de trabalhadores rurais que protestavam contra a extinção das frentes de trabalho na região da seca.
O ato público aconteceu em frente ao depósito da Cobal - Companhia Brasileira de Alimentação, que armanezava a pequena produção de milho, feijão e farinha da região Oeste do Ceará.
Uma criança morreu nos braços da mãe enquanto aguardava a entrega de uma modesta cesta de alimentos. A revolta acabou tomando conta dos agricultores presentes e a manifestação se radicalizou. Eles invadiram e saquearam o depósito da Cobal de Parambú e o fato foi destaque da imprensa nacional.
O filho do prefeito de Parambu fotografou a manifestação e o jornal Tribuna do Ceará, de propriedade do banqueiro arquiconservador Afonso Francisco Sancho, publicou a foto em destaque na capa de seu jornal dois dias depois.
Como o prefeito de Parambu, do PDS, não queria admitir que o saque na Cobal tivesse acontecido pela fome que se espalhava como fogo numa trilha de pólvora no sertão cearense e pela extinção das frentes de trabalho na região, ele acabou me escolhendo como bode expiatório.
Publicaram uma fotografia da manifestação e fizeram um círculo em volta do meu rosto. Na manchete da matéria, eles disseram que eu era o ex-líder estudantil carioca Wladimir Palmeira e que eu estaria ali para insuflar os pacatos e ordeiros trabalhadores rurais da região contra o prefeito pedessista de Parambu, contra o governador Virgílio Távora e o general presidente João Figueiredo.
Na época o ministro Mário Andreazza comprou a história de Sancho para informar que a paz social imperava no Nordeste e que os saques aos depósitos da Cobal, que se repetiam por todo o Nordeste, eram ações isoladas e coordenadas por subversivos como “o Palmeira de Parambu”.
Mas a denúncia forjada contra mim caiu por terra, porque exatamente no dia do saque ao depósito da Cobal de Parambu, Wladimir Palmeira estava em uma ilha no litoral de Alagoas onde sua esposa estava dando a luz a um filho do casal. Quem deu essa informação aos jornais foi o irmão de Wladimir, o político Guilherme Palmeira, filiado na época ao PDS do prefeito de Parambu, do governador Távora, do ministro coronel Andreazza e do general presidente Figueiredo.
Entrei com uma ação de indenização por danos morais contra o jornal cearense e acabei ganhando vinte salários mínimos que me sustentou por um bom período, já que o salário pago pelo jornal Mutirão estava atrasado uns quatro meses.
Foi nessa época que aprendi a respeitar muito os trabalhadores rurais nordestinos. Em sua maioria, são homens e mulheres fortes e decididos, que enfrentam a seca com muita bravura, coragem e determinação.
O nordestino que mora na zona rural do Nordeste e vive da terra só entrega os pontos quando chega ao limite extremo de sua fé, Ele pode até conviver com a fome e a sede, mas não consegue ver os filhos e os idosos sofrendo nessas condições.
No começo dos anos 80 conheci um grande poeta popular cearense, Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré. Ele nasceu em Assaré, Ceará, no dia cinco de 1909 e faleceu no mesmo local, no dia 8 de julho de 2002 aos 93 anos. Além de poeta popular, foi compositor, cantor e improvisador brasileiro.
Segundo filho de uma família pobre que vivia da agricultura de subsistência, cedo ficou cego de um olho por causa de uma doença. Com a morte de seu pai, quando tinha nove anos de idade, passou a ajudar sua família no cultivo das terras. Aos doze anos, freqüentou a escola local, em que é alfabetizado, por apenas alguns meses. A partir dessa época, começa a fazer repentes e a se apresentar em festas e ocasiões importantes.
Por volta dos vinte anos recebe o pseudônimo de Patativa, por ser sua poesia comparável à beleza do canto dessa ave. Ele ia constantemente à Feira do Crato onde participava do programa da rádio Araripe, declamando seus poemas. Numa destas ocasiões é ouvido por José Arraes de Alencar que, convencido de seu potencial, lhe dá o apoio e o incentivo para a publicação de seu primeiro livro, Inspiração Nordestina, de 1956..
Este livro teria uma segunda edição com acréscimos em 1967, passando a se chamar Cantos do Patativa. Em 1970 é lançada nova coletânea de poemas, Patativa do Assaré: novos poemas comentados, e em 1978 foi lançado Cante lá que eu canto cá. Os outros dois livros, Ispinho e Fulô e Aqui tem coisa, foram lançados respectivamente nos anos de 1988 e1994. Foi casado com Belinha, com quem teve nove filhos.
Conheci Patativa na cidade do Crato em 1981 e fiquei encantado logo com o poeta ao escutar ele declamar a poesia Triste Partida, que narra a persistência do retirante nordestino para ficar na sua terra. Só depois de tudo dar errado e a seca persistir é que a família descrita por Patativa no poema vai embora para São Paulo, para “viver ou morrer”.
Fiquei muito emocionado ao escutar aquela poesia da voz rouca e marcante de um grande poeta popular, talvez o maior poeta nordestino.
Aquela experiência me marcou profundamente. Fiz o caminho inverso do nordestino pobre que migra para São Paulo. Nasci em uma família de classe média da zona sul de São Paulo. Estudei o ensino fundamental em bons colégios particulares e o ensino médio em uma escola pública estadual. Entrei para uma boa universidade paga, a PUC de São Paulo e em 1979 me mudei para Fortaleza.
Confesso que levei um choque no bom sentido ao conhecer a realidade de um outro Brasil no interior do Ceará. Meus valores mudaram e aprendi a respeitar muito mais os homens e mulheres que vivem do suor de seu próprio trabalho em nossa terra.
Conheci quase todo o Nordeste do Brasil e escutando a letra desta poesia de Patativa do Assaré cantada pelo velho Gonzagão, compreendi o quanto é necessário mudar a realidade do nosso país.
Veja agora uma versão da Triste Partida, cantada por Luiz Gonzaga em um vídeoclip premiado em festivais de vídeos pelo Brasil.
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
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